A decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM) de proibir o uso de hormonioterapia cruzada em pessoas trans com menos de 18 anos gerou forte reação entre especialistas em saúde, ativistas e entidades que atuam na defesa dos direitos da população LGBTQIA+. A medida, estabelecida pela Resolução nº 2.427, foi publicada no Diário Oficial da União há pouco mais de um mês.
Para profissionais da área, como a farmacêutica Beo Oliveira Leite, a resolução impõe novas barreiras ao acesso à saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Beo iniciou sua transição de gênero em 2019, aos 23 anos, na cidade de Vitória da Conquista (BA), e lembra das dificuldades enfrentadas ainda antes de obter apoio institucional.
“Eu ficava frustrada por não conseguir acompanhamento adequado naquela época. E quando consegui, enfrentei um tratamento patologizante”, relata.
Beo, atualmente doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), alerta que muitas adolescentes trans já utilizam hormônios por conta própria, sem acompanhamento médico adequado. A nova resolução, segundo ela, pode agravar esse cenário.
Restrição baseada em casos de destransição
Segundo o CFM, a revisão das diretrizes foi motivada por estudos que indicam aumento nos casos de arrependimento e destransição. O relator da norma, conselheiro Raphael Câmara, afirmou que a decisão está alinhada a medidas adotadas em países como Suécia, Finlândia, Reino Unido e Estados Unidos.
Além da restrição etária para hormonioterapia, a nova norma também veta o uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes e cirurgias de redesignação em menores de 18 anos. Em casos que envolvam esterilização, a idade mínima sobe para 21.
“Estamos protegendo crianças de procedimentos irreversíveis em idade precoce”, defendeu Câmara.
Impacto na saúde mental e autonomia juvenil
Para Beo e outros especialistas, a resolução ignora avanços legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante autonomia a partir dos 12 anos em serviços de saúde. Também contraria a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, que assegura o acesso ao Processo Transexualizador pelo SUS.
A pesquisadora destaca ainda os riscos à saúde mental de jovens trans, que enfrentam altos índices de depressão e tentativas de suicídio.
“A descoberta da identidade de gênero acontece justamente nessa fase da vida. Essas pessoas precisam de acolhimento, não de mais portas fechadas”, afirma.
Resolução sob investigação do MPF
A mudança promovida pelo CFM está sendo investigada pelo Ministério Público Federal (MPF), que apura sua legalidade após denúncias da Associação Mães pela Diversidade e da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A Procuradoria já solicitou novos esclarecimentos ao Conselho, após considerar a resposta inicial incompleta.
Bruna Benevides, presidenta da Antra, classificou a medida como “institucionalização da transfobia” e alertou para o viés ideológico por trás da resolução.
“É uma agenda política anti-gênero disfarçada de preocupação médica. O direito à saúde não pode ser exclusivo para adultos trans”, declarou.
Pediatras e especialistas também reagem
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também se posicionou contra a nova norma e pediu sua revogação, defendendo o retorno da resolução anterior (nº 2.265) e maior acesso a diagnósticos e terapias adequadas.
Sara Wagner York, doutoranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em Gênero e Sexualidade, criticou a falta de escuta às vivências de crianças e adolescentes trans.
“A grande questão não é o uso de hormônios ou cirurgias. É o fato de essas decisões estarem sendo feitas por corpos trans”, refletiu.
Enquanto isso, ativistas e entidades seguem mobilizados para garantir que os direitos à saúde da população trans — especialmente de crianças e adolescentes — sejam preservados.