O cenário político e econômico no Brasil é de intensa disputa entre o Executivo e o Legislativo. O centro do embate gira em torno do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da definição de quem arcará com os R$ 20,5 bilhões necessários para cumprir a meta fiscal do orçamento de 2025. Essa quantia é fundamental para cobrir a diferença, já que o governo federal já bloqueou ou contingenciou R$ 31,3 bilhões em despesas para este ano.
Analistas consultados pela Agência Brasil apontam que o governo tem encontrado forte resistência do Parlamento para aprovar alternativas que evitem cortes ainda maiores nos gastos primários – aqueles destinados a serviços públicos essenciais como saúde e educação. A preocupação é que esses cortes afetem diretamente a população mais vulnerável, que depende desses serviços.
O Congresso Nacional, apoiado por setores do empresariado, tem se oposto a medidas que resultem em aumento da carga tributária. Eles defendem que a solução deve vir de uma ampliação dos cortes nas despesas primárias. No entanto, economistas alertam que muitas das propostas do governo classificadas como aumento de impostos são, na verdade, cortes em despesas tributárias.
Taxação de LCI, LCA e a visão dos especialistas
A professora de economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Juliane Furno, destaca que a proposta do Ministério da Fazenda de taxar em 5% os títulos de Letras de Crédito Imobiliárias (LCI) e do Agronegócio (LCA), atualmente isentos, é um exemplo de corte de gastos. “Quando o governo propõe taxar as LCI e as LCA, ele está cortando gastos, porque, para serem isentas, o governo que cobre o valor. Ou seja, o Congresso não quer cortar qualquer gasto, como gastos tributários, quando inseridos nas isenções fiscais e tributárias”, explicou à Agência Brasil.
A medida, porém, gerou duras críticas da bancada ruralista, que argumenta que a taxação encareceria o crédito rural. Furno acrescenta que esses gastos tributários beneficiam, em geral, grandes empresas que se utilizam de subsídios creditícios ou de isenção fiscal, o que explicaria a insistência do setor empresarial por mais cortes nas despesas primárias. “Tudo isso ─ subsídios creditício, subsídio tributário e isenção fiscal ─ entra no resultado primário do governo como ‘gasto’, e esse gasto eles não querem rever. Só querem cortar na carne dos gastos vinculados aos mais pobres”, completou Furno.
Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), corrobora que a ampliação dos cortes de gastos primários, exigida como alternativa ao aumento de receitas, prejudicaria a população mais dependente das políticas sociais. “O que há por trás disso é uma captura do orçamento por parte dos mais privilegiados, ampliando as desigualdades já abissais no Brasil”, criticou Manhas. Ela ainda questionou: “Com relação aos congressistas, que insistem que o único caminho é o corte de gastos primários, porque não cortam das emendas parlamentares que já ocupam cerca de 25% das despesas discricionárias? Ou dos supersalários?”
O custo do crédito, IOF e a Taxa Selic
A proposta de elevar as alíquotas do IOF tem sido amplamente criticada por lideranças do Congresso, mercado financeiro e empresários, que argumentam que a medida encareceria o crédito para as empresas, com impacto negativo para a população. No entanto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu o reajuste do IOF em entrevista ao podcast Mano a Mano: “Toda vez que a gente vai ultrapassar o arcabouço fiscal, a gente tem que cortar no orçamento. O IOF é um pouco para fazer esta compensação. Estamos pegando os setores que ganham muito dinheiro e pagam muito pouco e também não querem pagar. Então, essa briga nós temos que fazer”.
O governo já recuou parcialmente na medida do IOF. Inicialmente, o decreto previa arrecadar cerca de R$ 20 bilhões. Após negociações, uma nova norma foi editada com impacto fiscal de R$ 10,5 bilhões, mantendo cerca de 20% do aumento inicialmente previsto. Mesmo assim, a Câmara aprovou a urgência de um projeto para sustar a mudança ligada ao IOF.
Cleo Manhas argumenta que a mudança no IOF teria pouco efeito sobre o valor do crédito, que, segundo ela, tem sido encarecido pelas sucessivas altas da taxa Selic definidas pelo Banco Central (BC). “O que onera de fato o crédito é a taxa Selic proibitiva que temos. Esses setores pensam apenas nos próprios interesses e tentam envolver toda a sociedade como se fossem afetados igualmente”, disse. A especialista ressalta que a Selic, hoje em 15% ao ano, prejudica mais os pequenos comerciantes e microempreendedores, enquanto o agronegócio, por exemplo, conta com juros subsidiados do Plano Safra.
Cortes estruturais e a busca por equilíbrio fiscal
O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), tem sustentado que o governo deve apresentar medidas “estruturais” para reduzir os gastos primários, em vez de elevar a taxação de títulos ou o IOF. Entre as sugestões em debate estão a desvinculação dos pisos da saúde e educação do mínimo constitucional, a desvinculação do reajuste da aposentadoria do aumento real do salário mínimo, ou até mesmo o fim do reajuste do salário mínimo acima da inflação.
Cleo Manhas, do Inesc, contrapõe que os recursos atuais para saúde e educação são insuficientes para as necessidades da população brasileira. “Ainda não é possível ampliar a educação em tempo integral, ou mesmo melhorar a qualidade da alimentação escolar. Se quisessem de fato manter o tal equilíbrio fiscal, proporiam cortar subsídios e renúncias fiscais que reduzem a possibilidade de arrecadação”, afirmou Manhas, citando a manutenção da desoneração da folha de pagamento para 17 setores da economia em 2024 (com gasto tributário de R$ 18 bilhões) e a desoneração do Perse (Programa de incentivos ao setor de Eventos) sem compensação.
Hugo Motta chegou a afirmar que o governo não havia feito esforços para reduzir as despesas primárias. No entanto, o governo tem contra-argumentado, citando o pacote de corte de gastos do ano passado, que deve reduzir as despesas em R$ 327 bilhões em cinco anos, e o bloqueio de R$ 31,3 bilhões do orçamento deste ano.
Recentemente, o governo reviu a decisão inicial de maio sobre o IOF e outras medidas, apresentando uma nova Medida Provisória (MP) com mais cortes de gastos, na casa dos R$ 4,2 bilhões (com impacto na educação e no seguro defeso dos pescadores), e aumento de receitas em R$ 10,5 bilhões, mantendo cerca de 20% do aumento anterior previsto para o IOF. Entre as medidas da nova MP, está a ampliação da taxação de empresas de apostas online (bets) e fintechs, além da padronização das alíquotas de títulos de investimentos em 17,5%.
A obrigação do governo de cortar gastos ou aumentar receitas é fruto da Lei do Arcabouço Fiscal, aprovada no início do governo Lula, que limita as despesas da União e substituiu o antigo teto de gastos do governo Michel Temer. Cleo Manhas avalia que políticas fiscais muito restritivas não são sustentáveis, resultando em pressão para cortes em saúde e educação. “Com dois anos de existência do arcabouço, já estamos vendo a redução drástica do orçamento para políticas sociais. O caminho escolhido sempre recai sobre aqueles e aquelas sub-representados no Congresso Nacional, como mulheres, negros, indígenas, quilombolas e população ribeirinha”, concluiu.