Trinta anos após sua publicação, o livro “Cidade Partida“, de Zuenir Ventura, continua a ser um marco no debate sobre a desigualdade social no Rio de Janeiro. Publicado após as tragédias da Candelária e de Vigário Geral, a obra cunhou a expressão “cidade partida” para descrever o apartheid social entre morro e asfalto na capital fluminense.
Nesta semana, o lançamento de “Cidade Partida 30 anos depois” revisita a obra original, com artigos e entrevistas de importantes pensadores e protagonistas da sociedade carioca. O novo livro inclui sete artigos, sete entrevistas com figuras do clássico, uma entrevista inédita com Zuenir Ventura e um artigo dos organizadores. A obra também traz uma conversa com o fotógrafo João Roberto Ripper, fundador da Escola de Fotógrafos Populares/Imagens do Povo, no Complexo da Maré.
Segurança: A maior “Fissura”
A cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, assina o artigo “Violência Policial: onde a cidade é mais partida”. Em entrevista à Agência Brasil, ela argumenta que a segurança pública é o aspecto que mais “desagrega” o Rio de Janeiro.
“Do ponto de vista da segurança pública, o Rio é uma cidade mais partida. Temos Comando Vermelho, Terceiro Comando, milícias e temos a própria polícia, que tem um grau de corrupção altíssimo”, afirmou Silvia. Ela acrescenta que as políticas de segurança pública pioraram a situação, e que o racismo está por trás dessa dinâmica.
Silvia Ramos critica a militarização e a falta de controle sobre grupos armados, incluindo as milícias, que se originaram de grupos de extermínio formados por policiais. Para ela, a solução está na inteligência, não no confronto direto nas favelas, onde, segundo ela, é possível “atirar e matar impunemente”.
No entanto, Ramos vê um ponto positivo no fortalecimento da sociedade civil, com a ascensão de “dezenas de coletivos de favela” e a liderança de ativistas negros, que têm ganhado visibilidade e diálogo com os governos.
Banalização da violência e descontinuidade de políticas
Mauro Ventura, jornalista e filho de Zuenir, organizador do novo livro, avalia que a desigualdade social no Rio permanece “indecente”. Ele observa que, nos últimos 30 anos, o território sob controle de traficantes e milicianos se expandiu e a dinâmica do crime mudou. O antigo traficante local, que mantinha uma relação de respeito com a comunidade, foi substituído por criminosos que impõem o terror.
Mauro lamenta a banalização dos massacres e chacinas, que se tornaram mais frequentes e atingem inocentes. Ele atribui essa situação ao fracasso da guerra às drogas e a políticas de segurança pública que priorizam soluções “simplistas, bélicas e pirotécnicas” em vez de inteligência.
Ele também destaca a falta de continuidade e a superficialidade das políticas públicas para as favelas. “Tudo o que foi feito, de 30 anos para cá, em termos de iniciativas para as favelas, foram ações paliativas, que não resolveram estruturalmente o problema”, diz. Mauro Ventura também chama a atenção para o surgimento de traficantes evangélicos, que impõem intolerância religiosa, especialmente contra religiões de matriz africana, como no caso do Complexo de Israel.
Cidade “Multipartida”
Mauro Ventura concorda que os desafios descritos na obra original se aprofundaram e se tornaram mais complexos, e que a cidade continua fragmentada.
O ativista Itamar Silva, morador do Morro Santa Marta e autor de um dos artigos do livro, descreve a cidade, 30 anos depois, como “esfacelada e multipartida”. Ele argumenta que, embora o livro de Zuenir tenha revelado “outros mundos” na cidade, as desigualdades se aprofundaram a ponto de se tornarem uma realidade diária para a população.