Quatro anos após o início da pandemia, cerca de 284 mil crianças e adolescentes brasileiros que perderam um ou ambos os pais (ou responsáveis diretos) para a Covid-19 ainda aguardam políticas nacionais de amparo. A omissão do Estado brasileiro em fornecer reparação e assistência a esses órfãos é o foco de ativistas e pesquisadores.
A assistente social Paola Falceta, vice-presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), fundou a entidade após perder a mãe em 2021. Ela destaca a “invisibilidade chocante” das crianças, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade.
“Eu sou uma trabalhadora de classe C. Se eu perder o meu emprego agora, eu passo fome. Imagina se, nessa condição, eu tivesse duas crianças pequenas e morresse. Como é que iam ficar as crianças? E criança não pode falar publicamente, não dá entrevista”, questiona Paola Falceta.
Apesar da dimensão da tragédia — os 284 mil órfãos foram contabilizados em 2020 e 2021 — , o Brasil não possui uma política nacional de assistência. Apenas o estado do Ceará implementou um auxílio mensal de R$ 500 para as crianças e adolescentes que perderam pais para a doença.
Na esfera federal, os projetos caminham lentamente:
- Poder Legislativo: O Projeto de Lei 2.180 de 2021, que cria um fundo e um programa de amparo, ainda tramita em comissões do Senado.
- Poder Executivo: O Ministério de Direitos Humanos iniciou discussões sobre o tema em 2023, mas as medidas ainda não foram efetivadas.
A Avico, além da atuação política, mantém forte presença no Judiciário, buscando responsabilizar o Estado pela condução da crise sanitária que resultou no excesso de mortes.
A grande esperança de reparação financeira reside em uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal (MPF) em Brasília. A ACP, aberta em 2021, solicita:
- Indenização mínima de R$ 100 mil para cada família de vítima fatal.
- R$ 50 mil para famílias de sobreviventes com sequelas graves.
- R$ 1 bilhão para o Fundo Federal dos Direitos Difusos, como reparação por dano moral coletivo.
Paola Falceta informou que a Avico reuniu 139 testemunhas para o processo e ajudou a elaborar a justificativa científica. Após quatro anos, a ação avança para a fase de instruções de provas.
O pedagogo e pesquisador Milton Alves Santos, coordenador-executivo da Coalizão Orfandade e Direitos, enfatiza a responsabilidade do Estado.
“Nós tivemos crimes de saúde pública em prefeituras, em governos estaduais e no governo federal. Então, a gente tem que responsabilizar o Estado pelo prejuízo que causou na biografia e no desenvolvimento integral dessas crianças”, defende Santos.
Além do grave impacto financeiro, o luto dos órfãos da Covid-19 é agravado pela falta de contato com o ente querido — muitos não tiveram velório ou enterro. Santos defende que, na ausência da indenização, o Estado deve emitir uma orientação nacional para que os serviços públicos (habitação, saúde e assistência social) priorizem e visibilizem as crianças órfãs da pandemia.
A viúva Ana Lúcia Lopes, mãe de Bento (8 anos), órfão do fotógrafo Claudio da Silva, falecido em 2021, manifesta revolta ao lembrar que o marido teria sido vacinado pouco tempo depois de sua morte.
“É muito revoltante pensar isso, que ele não teve essa oportunidade. Vi as matérias sobre os e-mails mandados pelos laboratórios oferecendo as vacinas meses antes do que foi comprado. E o governo deixou passar, não fez nada”, lamenta Ana Lucia.
A vice-presidente da Avico garante que a luta pela reparação não cessará: “Se nada der certo aqui, vamos para o Tribunal Penal Internacional.”

