A paixão pela medicina mantém três especialistas com mais de 80 anos na ativa, contrariando o preconceito de que idosos deveriam “descansar em casa”. Suas histórias revelam que conhecimento, dedicação e amor à profissão não envelhecem.
65 anos de hospital: a nefrologista que não para
Aos 85 anos, sendo 65 deles dedicados a hospitais, a nefrologista Deise de Boni Monteiro de Carvalho não cogita parar. Em entrevista à Agência Brasil, ela é direta: não sente preconceito no dia a dia — nem por ser mulher, nem pela idade.
“Eu trabalho o tempo inteiro e, na medida em que fui ficando mais longeva, eu sou até mais respeitada, mais solicitada. Não sinto preconceito não. Ainda não pensei em deixar de trabalhar. Eu não sei fazer outra coisa também”, conta a médica aposentada do Ministério da Saúde.
Deise não é apenas uma profissional ativa: ela é pioneira. Integrou a equipe que realizou o primeiro transplante renal em São Paulo, em 1965, no Hospital das Clínicas, e é fundadora da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Atualmente, comanda os serviços de Nefrologia dos hospitais São Vicente de Paulo (HSVP) e São Francisco na Providência de Deus (HSF), ambos na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, onde coordena transplantes renais.
O HSF é o principal centro transplantador renal do estado do Rio e o segundo maior do país. Sob sua coordenação, já foram realizados 2.751 transplantes renais até 24 de outubro, desde o início do serviço em 2013. Sua dedicação transcende a sala de cirurgia: Deise já compareceu ao casamento de um paciente no Acre, tamanho o vínculo criado com aqueles que cuida.
Para quem tem mais de 60 anos, seu conselho é categórico: “Não pare de trabalhar. Seja útil. O trabalho me deixa ligada, você lida com gente de várias idades, com jovens”.
Atualmente, a equipe que coordena é toda “pediátrica”, como ela mesma brinca. Considera isso positivo: são cabeças mais arejadas, e o intercâmbio é enriquecedor. “Eu não sei se eles têm preconceito. Se têm, eles escondem”, diz sorrindo.
Cirurgião cardíaco: trabalhar é prazer, não esforço
O cirurgião cardíaco Henrique Murad, de 82 anos, segue trabalhando por uma razão simples: gosta do que faz.
“Gosto muito de trabalhar; gosto do que faço, apesar de ter muitos outros interesses. Gosto de cinema, de teatro, não vou mais jogar futebol porque não dá, mas eu gosto da vida e de trabalhar. É prazeroso”, explica.
Murad vem de uma família longeva: sua bisavó morreu aos 98 anos; o pai, aos 94; e a mãe, que ainda nadava aos 87, faleceu aos 98. “Minha mulher trabalha muito; meus filhos trabalham muito. Faz parte da vida. Não é esforço nenhum. Foi assim que a gente foi educado e é assim que a gente continua.”
Por causa de um problema de saúde (estenose do canal medular), Murad decidiu parar de operar aos 80 anos. Mudou de foco: dedicou-se ao consultório, ao ensino e à editoria de uma revista médica.
Em entrevista à Agência Brasil, ele cita diretriz da Sociedade Americana de Cirurgia Geral que orienta que o cirurgião idoso é fundamental pelo conhecimento adquirido e por poder repassá-lo. Por isso, essa mão de obra não deve ser dispensada. A regra, porém, precisa ser adaptada.
“Tem gente que está ótimo aos 95 anos e tem gente que, com 70, está horroroso. Por isso, não adianta fazer uma regra que vale para todos”, avalia.
Para Murad, não se deve descartar um profissional por causa da idade, porque se perde muito conhecimento. “Ela [a diretriz] advoga que se avaliem as condições do médico. Se ele estiver bem, continua operando, continua trabalhando enquanto puder. Acho que essa é uma política boa.”
Referência brasileira em cirurgias de aorta, Henrique Murad mantém-se ativo no serviço de Cirurgia Cardíaca do HSVP-RJ, que chefiou por 40 anos. “Trabalhar para mim não é esforço”, garante ele, que realizou cerca de 5 mil cirurgias de coração em quase 60 anos de carreira. É ainda imortal da Academia Nacional de Medicina (ANM). No próximo dia 9 de dezembro, falará exatamente sobre etarismo na medicina durante a Jornada Médica do HSVP-RJ.
Aos 95 anos, mesma rotina há mais de duas décadas
Com 95 anos completados em 28 de outubro, o cirurgião José Badim mantém a mesma rotina de quando fundou o hospital que leva seu sobrenome, há 24 anos. Acorda às 5h, toma café e vai para a unidade, na Tijuca, zona norte do Rio, onde atende pacientes e realiza cirurgias.
Questionado sobre o motivo de continuar trabalhando, Badim responde: acima de tudo, por amor à profissão e ao ser humano.
“Me sinto maravilhosamente bem. Vou ao hospital todos os dias. Chego cedo, passo visita aos pacientes e ainda opero. Adoro essa rotina. Só vou parar se algo me impedir, uma doença. Enquanto estiver apto e com as mãos firmes, continuo.”
Para José Badim, o contato com o paciente exige muita dedicação e altruísmo e, mesmo com o domínio da técnica, o médico não pode descuidar da visão humanitária do cuidado. “Trabalho até hoje em razão de adorar fazer medicina. A medicina é um estímulo contínuo para mim. Ela me mantém vivo. Se eu pudesse voltar no tempo e optar novamente, faria a mesma escolha de vida, sem dúvida alguma.”
Perguntado se já sofreu discriminação por continuar na ativa apesar da idade, ele afirma que um profissional precisa estar sempre atualizado para ser respeitado.
“Eu assisti e vivi todas as mudanças na medicina nos últimos 60 anos, e a evolução é brutal. Hoje, não fazemos nada sem a ajuda da tecnologia. Antes, o médico tinha que abrir o tórax; agora, fazemos dois ou três furos para tratar o mesmo problema e, no dia seguinte, o paciente vai embora para casa. Um avanço fantástico”, destaca.
“Essa evolução vem proporcionando melhor diagnóstico, melhor cura em mais curto prazo, maior economia, retorno à vida normal em menos tempo, melhor qualidade de vida. É fundamental buscar sempre a atualização técnica. A medicina evolui rapidamente, e o médico precisa estar receptivo à colaboração das novas tecnologias e dos novos tratamentos na sua prática médica”, acrescenta.
Para José Badim, o etarismo não o afeta. “A longevidade depende do cirurgião. Normalmente, quando chega aos 60 ou 65 anos de idade, o homem começa a desenvolver um certo tremor nas mãos. Quando isso acontece com o cirurgião, ele resolve parar, porque isso é incompatível com a cirurgia”, explica.
“Com a mão firme, podendo fazer um corte limpo, o profissional não precisa se aposentar. É exatamente assim que me sinto: seguro para operar. E entro no centro cirúrgico com o maior prazer. Sou uma pessoa ativa demais para me aposentar. A mente trabalhando, ativa e estimulada pelas obrigações e responsabilidades, nos mantém vivos. Isso é um aspecto que deve contar muito para a aposentadoria”, complementa.
Formado em 1956 pela Faculdade Nacional de Medicina, José Badim especializou-se em cirurgia plástica e reconstrutiva pela Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, onde atuou por sete anos. Voltou ao Brasil em 1963, onde realizou dois procedimentos pioneiros no país: os primeiros implantes de mão e de couro cabeludo. O cirurgião ganhou notoriedade em 1972, ao atender as vítimas de uma explosão na Refinaria de Duque de Caxias (Reduc), realizando enxertos de pele humana nas pessoas que tiveram parte do corpo queimada no incêndio.

