Maria de Fátima Marinelli, 68 anos, segurava com força o documento que acabara de receber. Ex-cortadora de cana, ela tomava cuidado para que as lágrimas não molhassem o papel. Nem a camiseta branca com a foto do marido, Nativo da Natividade de Oliveira, assassinado há quase 40 anos.
O que ela tinha nas mãos não era um papel qualquer. Era a certidão de óbito retificada do marido, em que o governo brasileiro finalmente admite: Nativo foi morto por um agente do Estado.
“Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964”, diz o documento, entregue nesta quarta-feira (3) no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Nativo era ativista sindical nos anos 1970, representante dos trabalhadores rurais em Carmo do Rio Verde (GO). Foi assassinado em 1985, último ano da ditadura militar no Brasil. Segundo investigação documentada pela Comissão Nacional da Verdade, o executor foi um pistoleiro da região e o mandante teria sido o prefeito da cidade, Roberto Pascoal Liégio.
A dor que atravessa gerações
“A morte do meu marido é de uma dor que não sei explicar. Esse atestado é muito especial pra gente porque só nós sabemos o que passamos”, diz Maria de Fátima, a voz embargada.
Os dois filhos do casal eram crianças quando tudo aconteceu. Eduardo, hoje com 51 anos, e Luciane Rodrigues, 52, tiveram que trabalhar na roça para ajudar a mãe a sobreviver. Como o crime foi executado por um pistoleiro, demorou décadas para que a morte fosse vinculada a um agente do Estado.
“Não pudemos fazer o que meu pai queria. Ele pedia para a gente estudar”, conta Eduardo, que hoje é servidor público. Luciane, costureira, lembra que precisou deixar a cidade na época porque a família não conseguia emprego em lugar nenhum.
O pai deles organizava os trabalhadores rurais. Isso contrariava os proprietários de terra. E por isso, ele era constantemente ameaçado.
28 famílias recebem a verdade no papel
Além da família de Nativo, outras 27 famílias de vítimas da ditadura receberam certidões retificadas no mesmo evento. A ministra dos Direitos Humanos, Macaé Evaristo, disse aos presentes — descendentes, amigos e representantes das pessoas mortas e desaparecidas — que a luta pelo direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação não pode ser apenas pauta de governo, mas da sociedade brasileira inteira.
Ao todo, pelo menos 434 pessoas foram consideradas mortas em função da luta contra a ditadura militar. Macaé defendeu que é preciso contar e recontar todos os dias o que aconteceu no período de opressão para que o Brasil não tenha dúvida sobre as violações de direitos que ocorreram.
“A anotação da causa da morte, em decorrência de graves violações de direitos humanos geradas pelo Estado brasileiro, é a resposta da democracia contra a opressão”, afirmou a ministra. Ela informou que já houve a entrega de 63 certidões em Minas Gerais e 102 em São Paulo.
A presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, anunciou que estão previstas pelo menos mais duas entregas de certidões retificadas em 2025. Ela destacou que o ato honra a memória das mulheres e homens que lutaram contra a opressão.
“É a memória deles que sempre será lembrada e homenageada. Já os donos dos coturnos e burocratas que os pisotearam, eles serão lembrados apenas num lixo da história”, disse Eugênia.
O caminho desde 1995
A presidente da comissão destaca que o respeito à memória das vítimas e de suas famílias tem avançado passo a passo desde 1995, quando a Lei 9.140 reconheceu como mortas as pessoas que estavam desaparecidas no regime militar.
Entre essas pessoas, Demerval da Silva Pereira foi morto em janeiro de 1974 no Araguaia. No evento de quarta-feira, em Brasília, a sobrinha dele, a advogada baiana Andréia Pereira, registrou que a família sofreu “terrivelmente” com a ausência e com a falta de informação.
Após a captura de Demerval, a tristeza tomou conta da casa. O pai dela sofreu de depressão. A avó também. Ambos morreram. Depois que Andréia entrou para a faculdade, passou a procurar informações sobre as torturas que o tio sofreu.
“Não tenho mais esperança de encontrar o corpo dele, que foi uma das primeiras pessoas a serem reconhecidas como vítimas da ditadura”, disse a sobrinha, emocionada.
Jorge Aprígio: um tiro pelas costas
No auditório do Ministério dos Direitos Humanos, os familiares olharam com saudade as fotos pregadas na parede. Entre eles, a enfermeira Sueli Damasceno, 72 anos, sorriu e chorou diante da imagem em preto e branco do irmão, o operário e estudante de medicina Jorge Aprígio de Paula.
Ele foi assassinado em 1º de abril de 1968 no centro do Rio de Janeiro, durante manifestação em repúdio à morte do estudante secundarista Édson Luiz, ocorrida em 28 de março do mesmo ano. Segundo relato da Comissão Nacional da Verdade, Jorge Aprígio tomou um tiro pelas costas durante a repressão ao ato por soldados do Exército.
Sueli lembra que a notícia caiu como uma bomba na casa da família humilde, moradora de área periférica em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Como o pai já havia falecido, Jorge era um dos esteios da casa.
“Eu era a caçula e ele sempre cuidou muito de mim. É muito duro até hoje”, diz a enfermeira.
A primeira certidão de óbito indicou que o rapaz teve uma “ferida transfixante do tórax, com lesão do pulmão e do coração; hemorragia interna consecutiva”. O exame dos legistas indicaria que ele levou um tiro pelas costas.
Racismo após a morte
Mesmo depois da tragédia, a família ficou com medo. Os agentes faziam visitas e perguntas frequentes. Foi preciso mudar de casa.
Sueli entende que o tratamento envolveu também racismo. “Nós somos uma família de negros, moradores da periferia. Não houve respeito nenhum pelo Jorge e por nós. Meu irmão queria fazer medicina para cuidar da gente”.
Depois da perda, Sueli resolveu cursar enfermagem para também cuidar da família. Para ela, a nova certidão de óbito ajuda a contar a história de forma mais justa.
A enfermeira quer que as futuras gerações entendam que Jorge era um jovem operário e estudante idealista. Mais do que a foto em preto e branco, ela quer defender a história do irmão para que ajude seus filhos e netos a andarem de cabeça erguida. Sem serem perseguidos pela cor da pele ou pelo que pensam.

