Se o mundo mudou com a internet, as redes sociais e os celulares grudados na mão 24 horas por dia, a infância também mudou — e não necessariamente para melhor. Em plena era da hiperconexão, o contato com a natureza, as brincadeiras ao ar livre e o tempo longe das telas já viraram prescrição médica. Isso mesmo: pediatras estão literalmente receitando brincadeiras como quem receita vitamina.
Renata Aniceto, membro do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e com 29 anos de consultório, conta que suas orientações agora vão muito além de vacinas e alimentação saudável. Ela prescreve tempo de convívio entre pais e filhos.
“Eu quero que no final de semana vocês tenham duas horas de brincadeiras no parque, de vivências em casa, que levem as crianças para cozinhar, para fazer jogos de tabuleiro. É um retrocesso. Essa geração de pais não sabe como brincar com os filhos porque eles já vêm de uma fase conectada com as telas”, alerta a pediatra.
Pode soar estranho — mas é necessário. Porque, se depender do piloto automático, pais e filhos vão passar o dia inteiro cada um no seu celular, sem trocar uma palavra.
A desconexão dentro de casa
Renata observou uma mudança comportamental gigantesca nos últimos anos, principalmente com a entrada do celular e do tablet no cotidiano das famílias. E o resultado? Desconexão humana.
“Houve uma desconexão entre pais e filhos. Porque não só as crianças estão mais tempo em tela, os pais também. No consultório, passaram a chegar muito mais alterações como ansiedade e depressão, quadros que nós nem estudávamos na nossa formação [em pediatria] e hoje precisamos lidar. É um momento muito conectado e desconectado ao mesmo tempo, com essa desconexão humana”, desabafa a médica.
Traduzindo: as crianças estão adoecendo mentalmente. E os pais, muitas vezes, nem percebem — porque estão ocupados respondendo mensagens no WhatsApp.
O que as telas estão fazendo com o cérebro das crianças
Não é só uma questão de comportamento. O excesso de telas prejudica o desenvolvimento do cérebro e da cognição infantil.
“O excesso de telas vai estimular áreas que não são tão primordiais e pode levar à perda de habilidades, como foco, atenção, memória, resolução de problemas. São gerações que estão tendo mais dificuldade na comunicação e na aprendizagem. Além disso, se eu mexo menos o corpo, então haverá maior incidência de obesidade“, explica Renata.
Resumindo: criança grudada na tela perde capacidade de concentração, engorda mais e tem dificuldade para aprender. E isso não é achismo — é neurociência.
Quanto tempo de tela é aceitável?
No ano passado, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) atualizou as orientações sobre o tempo de tela adequado para cada faixa etária. E o recado é claro: menos é mais.
- De 0 a 2 anos: sem telas, nem passivamente (aquele vídeo no celular para o bebê parar de chorar? Não rola).
- De 2 a 5 anos: uma hora por dia, com supervisão.
- De 6 a 10 anos: uma a duas horas por dia, no máximo, e sempre com supervisão.
- Entre 11 e 18 anos: de duas a três horas por dia, e nunca deixar “virar a noite”.
Pode parecer pouco — especialmente para quem está acostumado com crianças passando o dia inteiro no YouTube. Mas é o que a ciência recomenda.
Brincadeira de verdade: o antídoto para o digital
Angela Uchoa Branco, professora do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento da Universidade de Brasília (UnB), reforça a importância das brincadeiras presenciais, face a face com outras crianças e adultos.
“Jogos e brincadeiras livres são fundamentais para o desenvolvimento da criança. Contação de histórias dialogadas, ler para a criança antes de dormir, deixar livrinhos infantis disponíveis para desenvolver a criatividade e o gosto pela leitura. E, sempre que possível, levar a criança para brincar ao ar livre e conviver com a natureza”, afirma Angela.
Lia Jamra, diretora executiva da ONG Vaga Lume, que há 25 anos atua com educação nos nove estados da Amazônia Legal, vai na mesma linha. Para ela, o incentivo à leitura é uma forma de “sair da tela”.
“É muito importante pais e cuidadores terem iniciativa de ler para a criança para ajudar a sair da tela. A leitura traz um impacto socioemocional muito grande na formação de repertório, visão de mundo, possibilidade de sonhar. A infância na Amazônia é mais saudável. Várias brincadeiras fora de casa fazem parte da rotina dessa criança, como um mergulho no rio“, diz Lia.
Enquanto isso, na cidade grande, a criançada está travada no sofá assistindo a gameplays no YouTube.
Tela e sono: a combinação que não funciona
O excesso de telas também prejudica o sono infantil — e isso tem consequências sérias.
“Se usar telas no período noturno, fica com a luz da tela no meu cérebro mais tempo, o que diminui a produção de melatonina, hormônio responsável pela indução inicial do sono. Assim, a criança vai ter mais dificuldade para pegar no sono e despertares noturnos mais frequentes“, explica Renata.
E o sono não é só para descansar. É durante a noite que o cérebro fixa os aprendizados do dia e secreta hormônios essenciais, como o hormônio do crescimento e os hormônios que controlam fome e saciedade. Criança que dorme mal aprende menos, cresce menos e tem mais risco de obesidade.
Diálogo, limite e afeto: o tripé da educação
A professora da UnB, Angela Uchoa, fecha com um recado direto: é preciso estabelecer limites com diálogo e respeito, sem agressões físicas.
“É necessário sempre escolher o momento certo para conversar e estabelecer limites, dialogando. Devemos ter tolerância zero para agressões, mas manter uma atitude respeitosa e dando exemplo de como se deve agir quando algo nos desagrada. Respeito gera respeito, é necessário demonstrar afeto para que a criança se sinta amada e elogiar aquilo que ela sabe fazer bem. Isso fortalece a sua autoestima, essencial para seu pleno desenvolvimento como ser humano”, completa a professora.
Educar não é bater. Educar é conversar, orientar e dar exemplo. E isso vale tanto para o comportamento quanto para o uso das telas.
O retrocesso necessário
No fim das contas, o que os especialistas estão pedindo é simples: voltar ao básico. Brincar, ler, correr, conversar, dormir bem. Coisas que, há 20 anos, eram óbvias — e que hoje precisam ser prescritas em receituário médico.
A tecnologia veio para ficar. Mas a infância também precisa ficar. E, se for preciso escolher entre os dois, a resposta é clara: criança precisa de menos tela e mais mundo real.
Pode ser um retrocesso. Mas é o tipo de retrocesso que salva vidas.

