A curitibana Lúcia* só percebeu que havia sofrido abusos sexuais cometidos pelo próprio marido após iniciar o processo de recuperação da dependência em álcool. O entendimento veio durante a participação em grupos do Alcoólicos Anônimos (AA). “A mulher alcoólica é extremamente vulnerável”, relatou em entrevista à Agência Brasil. No país, mais de 7% das mulheres adultas têm diagnóstico de alcoolismo.
A experiência de Lúcia ilustra uma realidade ainda pouco visível e que começa a ganhar resposta institucional. Foi sancionada nesta semana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei 15.281, que determina a promoção de assistência multiprofissional específica para mulheres usuárias e dependentes de álcool. A medida reconhece que o impacto da dependência química sobre mulheres envolve fatores biológicos, sociais e de gênero distintos.
Vulnerabilidade e lacunas no atendimento
Segundo a psiquiatra Natalia Haddad, vice-presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), a atenção diferenciada é urgente. Dados citados pela pesquisadora mostram que as mortes associadas ao consumo de álcool entre mulheres cresceram 27% entre 2010 e 2023.
Para ela, a nova legislação é um avanço, mas ainda exige definição prática. Haddad ressalta a necessidade de clareza sobre ações concretas, prazo de implementação e estrutura de atendimento. “É muito diferente tratar uma mulher alcoolista de um homem alcoolista. Mais diferente ainda quando falamos de gestantes, adolescentes ou mulheres em contextos sociais distintos”, afirma.
Recorte racial e social
Outro dado destacado pela especialista é que 70% das mortes de mulheres por transtornos ligados ao uso de álcool atingem pretas e pardas. Para Haddad, isso evidencia um recorte que não é apenas de gênero, mas também social e racial, exigindo políticas públicas direcionadas.
Diferenças biológicas e estigma
Além das desigualdades sociais, há diferenças fisiológicas relevantes. As mulheres têm menor quantidade de água corporal e menos enzimas hepáticas responsáveis pela metabolização do álcool. Isso faz com que o impacto da bebida seja maior, mesmo em quantidades inferiores às consumidas por homens.
Somam-se a isso fatores sociais, como jornadas duplas ou triplas, responsabilidades familiares e o estigma. “Muitas mulheres demoram mais a procurar ajuda por culpa e julgamento social”, explica Haddad. O risco é ainda maior entre gestantes e lactantes, já que o consumo pode provocar danos tanto à mãe quanto ao feto.
Importância de espaços exclusivos
A psiquiatra defende que mulheres tenham acesso a grupos de apoio exclusivos, onde possam falar sem medo ou constrangimento. Lúcia confirma que encontrou esse acolhimento no AA. Outra participante, Kika*, do Rio de Janeiro, relata que as reuniões femininas oferecem um espaço livre de julgamentos, onde histórias se cruzam e se reconhecem.
Já Sandra*, de São Paulo, conta estar há 24 anos sem beber e relata que muitas mulheres ainda enfrentam preconceito dentro da própria família.
Mais visibilidade e apoio
No Alcoólicos Anônimos, cerca de 6,5 mil mulheres buscaram ajuda pelos canais da iniciativa Colcha de Retalhos, que promove atividades voltadas ao alcoolismo feminino. Segundo a entidade, as reuniões exclusivamente femininas cresceram 47,7% no período pós-pandemia. Atualmente, são 65 reuniões semanais em todo o país.
Para a psicóloga Jaira Adamczyk, pesquisadora em tratamento e prevenção à dependência química, esses espaços permitem que mulheres relatem dores, traumas e abusos vividos durante o uso compulsivo do álcool. Segundo ela, a ampliação da rede de apoio é essencial para transformar a lei em proteção real.
* Nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas.

