O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), principal legislação brasileira sobre os direitos da infância, e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – ambos em vigor há 35 anos – ainda enfrentam um obstáculo fundamental para sua plena efetivação: a participação e manifestação de opiniões das próprias crianças sobre temas que as afetam.
A avaliação é da pesquisadora húngara Zsuzsanna Rutai, referência internacional em empoderamento e salvaguarda infantil, durante sua visita ao país. Segundo a especialista, esse direito, garantido tanto pelo ECA quanto pelo tratado internacional, ainda não está estabelecido em todos os países signatários, nem em todos os níveis em que deveria estar presente, “desde a família até nas políticas internacionais”.
Atualmente, Zsuzsanna atua na organização social Child Rights Connect, que articula ações no Comitê dos Direitos da Criança, responsável por monitorar a implementação da Convenção da ONU globalmente.
A dificuldade de ouvir crianças em debates sociais
Para a pesquisadora, uma forma de mensurar o estabelecimento desse direito é observar os debates sobre novas leis que tratam da infância. Ela aponta que poucos países reservam espaços de participação social nesses debates, e quando a consulta deveria envolver a opinião das crianças, a própria democracia falha em superar esse desafio.
“Quando crianças se erguem em defesa dos próprios direitos humanos, defendem o direito de outras crianças ou de grupos adultos, não são levadas a sério. A sua posição, o seu direito de estar ali, também é questionada”, reforça Zsuzsanna.
A especialista, que possui experiência no Conselho da Europa e no Comitê de Lanzarote (para proteção contra exploração e abuso sexual infantil), destaca que a ausência de espaços de participação é uma forma de violação que também se manifesta na repressão sutil. “São muitas vezes exemplos sutis, como a aplicação de exames extras às crianças que são defensoras dos direitos humanos e que acabam apresentando um mau desempenho escolar por terem professores que não gostam da postura ativista”, observa.
Currículo de formação para crianças ativistas
Zsuzsanna defende que a transformação do ambiente escolar é a base para sociedades que valorizem os direitos da infância, mas isso exige o envolvimento ativo das crianças. Para enfrentar esse desafio, ela trabalha em uma agenda internacional para sensibilizar tomadores de decisões e formar crianças ativistas.
Isso será feito a partir da criação de um currículo de formação desenvolvido em parceria com o Instituto Alana, organização social brasileira sem fins lucrativos e referência na defesa dos direitos da infância. O projeto-piloto, chamado “Agora e o Futuro”, será implementado em quatro países: Brasil, Togo, Moldávia e Tailândia.
Os primeiros encontros já estão sendo realizados no Brasil, em São Paulo. O currículo será de educação não formal, baseado no “aprender fazendo”, com atividades interativas que ajudem as crianças a conhecer seus direitos e defendê-los de forma segura e significativa, sem palestras ou textos obrigatórios.
A expectativa é que essa nova ferramenta transforme as estruturas dos judiciários e os sistemas de proteção através da ação das próprias crianças. “É preciso ter gerações bem-educadas, empáticas e realmente confiantes no que fazem, acreditando na democracia, nos direitos humanos, protegendo a terra, respeitando o ambiente. Por isso, se quisermos realmente deixar um legado, temos que erguer as próximas gerações”, conclui a pesquisadora.