Festa Literária das Periferias chega à 15ª edição em Madureira com foco no Caribe, diáspora africana e descolonização do pensamento. Primeira homenagem a escritor vivo
Começa nesta quarta-feira (19) a 15ª edição da Festa Literária das Periferias (Flup), no Viaduto de Madureira, zona norte do Rio. O tema desta vez é provocativo: Ideias para Reencantar o Mundo: Escrevivências, Sonhos e Batidões — uma celebração do legado político e cultural do Caribe e suas influências na diáspora africana brasileira.
A festa vai até 23 de novembro e depois retoma entre os dias 27 e 30, trazendo encontros entre escritores, intelectuais e a comunidade periférica. E desta vez, tem um marco histórico: pela primeira vez, a Flup homenageia um escritor ainda vivo.
Conceição Evaristo: a voz que transforma dor em potência
A homenageada é Conceição Evaristo, escritora mineira que criou o conceito de “Escrevivência” — a arte de transformar experiências individuais em narrativas coletivas da comunidade afro-brasileira. É literatura que sangra, que respira, que denuncia.
“Escrevivência” não é apenas um estilo literário. É um ato político. É pegar a própria história — muitas vezes marcada pela exclusão, pela violência e pelo racismo — e transformá-la em arma de resistência e memória coletiva.
Conceição estará na mesa O Sonho de Nossos Heróis, que Precisamos Manter Vivo, ao lado de Mireille Fanon, filha do filósofo Frantz Fanon. Juntas, vão debater as trajetórias de luta social no Brasil e no Caribe e os líderes desses movimentos.
Frantz Fanon: o pensamento que incomoda até hoje
A Flup também traz uma exposição sobre Frantz Fanon, o psiquiatra e filósofo político afro-caribenho que escancarou o racismo estrutural, criticou a burguesia europeia e denunciou a dominação colonial. Suas obras, escritas nos anos 1950 e 1960, continuam atuais — incômodas, necessárias.
A intervenção Códigos Negros se inspira no livro Os Condenados da Terra, de Fanon, para criar obras digitais exibidas em telões de LED durante a festa. É uma parceria da organização Olabi com artistas que usam inteligência artificial e outras tecnologias de vídeo e imagem.
“O pensamento de Fanon está tão atualizado e urgente, inclusive para fazer uma discussão sobre tecnologia”, explica Silvana Bahia, curadora da intervenção e co-diretora executiva do Olabi.
Ela ressalta que a ideia de descolonizar, de entender os impactos da estrutura racista e misógina na vida das pessoas, são aspectos centrais das obras de Fanon discutidas na intervenção — agora potencializadas por ferramentas digitais.
12 anos levando literatura para onde ela deveria estar
Com 12 anos de história no Rio de Janeiro, a Flup já passou pelo Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia, Vidigal, Cidade de Deus, Maré, Biblioteca Parque, Museu de Arte do Rio (MAR) e Morro da Providência. O objetivo? Promover integração social através de experiências culturais.
O trabalho rendeu reconhecimento nacional e internacional: prêmios do jornal O Globo em 2012, o Awards Excellence da London Book Fair, prêmio do Instituto Pró-Livro em 2016 e o prêmio Jabuti na categoria Fomento à Leitura em 2020.
Em 2023, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro declarou a Flup patrimônio imaterial. Não é pouco. É o reconhecimento de que literatura não é privilégio de bairros nobres e livrarias chiques.
Além dos eventos públicos, a organização também promove processos formativos para escritores e já lançou mais de 30 livros no mercado — dando voz a quem historicamente foi silenciado.
Reencantar o mundo começa por quem foi esquecido
O tema desta edição não é à toa. Reencantar o mundo passa por escutar quem sempre foi colocado à margem. Passa por entender que o Caribe, a diáspora africana e as periferias brasileiras têm histórias, filosofias e literaturas tão potentes quanto qualquer cânone europeu.
E passa, principalmente, por levar essas histórias para onde elas pertencem: nas ruas, nos viadutos, nas comunidades. Onde o povo está.
A Flup não é apenas uma festa literária. É um ato de resistência. É dizer que literatura é direito, não luxo. É celebrar Conceição Evaristo enquanto ela ainda pode ouvir os aplausos. É descolonizar o pensamento usando inteligência artificial. É fazer do batidão uma forma de existir e insistir.
Madureira está pronta. E você?

