Trabalho intermitente e precarização: debate reacende com proposta de mudanças na jornada no setor de comércio
Há uma semana, empresários do setor de supermercados reunidos em São Paulo disseram ter dificuldades para preencher 35 mil postos de trabalho no estado.
Segundo eles, os jovens buscam mais modernidade e flexibilidade. Como solução, sugerem a adoção do regime de trabalho por hora, também conhecido como contrato intermitente.
Representantes sindicais e pesquisadores da área do trabalho discordam da proposta. Alegam que a mudança representa maior precarização: há riscos de redução de salários e perda de direitos trabalhistas.
Realidade atual
Uma análise básica mostra que os salários médios oferecidos no setor muitas vezes não cobrem as despesas mensais de um trabalhador. Em geral, a remuneração líquida fica próxima ao valor do salário mínimo, enquanto custos fixos — como aluguel, alimentação e contas essenciais — já consomem praticamente toda a renda, sem contar despesas com transporte, saúde, comunicação e lazer.
Segundo a doutora em Psicologia Social do Trabalho e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Flávia Uchôa de Oliveira, muitos trabalhadores acabam endividados ou precisam complementar a renda usando o único dia de folga da escala 6×1 para realizar bicos. “É uma espiral de precarização”, avalia.
Ela também aponta impactos na saúde: “Pesquisas em andamento mostram que esses trabalhadores associam essas condições ao adoecimento físico e mental. Muitos utilizam ansiolíticos, antidepressivos e analgésicos para suportar a rotina”.
Trabalho por hora
O contrato intermitente foi incluído na CLT pela reforma trabalhista de 2017 e validado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2024. Nele, o trabalhador tem carteira assinada, mas sem jornada ou salário fixos. A remuneração é proporcional às horas convocadas pela empresa.
Direitos como férias, 13º salário e FGTS são calculados com base no tempo trabalhado. Todas as profissões podem adotar esse modelo, exceto aeronautas, que seguem legislação própria.
A doutora em Economia e pesquisadora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Alanna Santos de Oliveira, avalia que o modelo fragiliza o trabalhador. “Para ter uma renda razoável, ele teria que assumir múltiplos contratos, o que é difícil. Há baixa adesão no Brasil e, mesmo com o discurso da flexibilidade, é uma modalidade que gera imprevisibilidade de renda e vida”, afirma.
Ela destaca ainda que muitos trabalhadores não conseguem atingir o valor mínimo para contribuir ao INSS, o que compromete acesso a benefícios como seguro-desemprego e abono salarial.
Precarização
Embora regulamentado, o contrato intermitente é visto por pesquisadores como uma forma de precarização. Segundo Oliveira, isso se dá por conta da insegurança, instabilidade, baixos salários e limitações no acesso à seguridade social e à negociação coletiva.
Já a psicóloga Flávia Uchôa alerta para o uso de termos como “modernização” e “empreendedorismo” para justificar a desregulamentação trabalhista. “Muitos jovens são incentivados a seguir caminhos de empreendedorismo precário ou empregos ultra-flexíveis, sem estrutura, formação ou proteção social.”
Fim da escala 6×1
Entidades que representam os trabalhadores do comércio se opõem à adoção do trabalho por hora. A Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC) defende a redução da jornada semanal, sem corte de salários.
“Acabar com a escala 6×1 traria mais qualidade de vida e poderia até aumentar a produtividade”, afirma Luiz Carlos Motta, presidente da CNTC.
Para Márcio Ayer, presidente do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro e diretor da CTB, o contrato intermitente deixa o trabalhador refém do empregador. “A juventude quer trabalhar com dignidade, estudar, ter tempo para a família e descanso. Não aguenta mais salários de fome e longas jornadas”, diz.
Ele ressalta que o argumento de prejuízo às empresas não se sustenta. “Em 2023, o setor de supermercados cresceu 6,5%, quase o dobro do PIB. Grandes redes continuam lucrando e expandindo. Falar em crise para justificar redução de direitos não corresponde à realidade”, conclui a economista Allana Oliveira.