O Brejo da Flexeira, ecossistema vital para a Comunidade Quilombola de Maria Joaquina, em Cabo Frio, virou esgoto a céu aberto. Nos últimos quatro anos, o despejo irregular transformou água limpa em veneno, matou o pescado e expulsou as famílias de um território que as alimentava há gerações.
A Prefeitura de Cabo Frio é apontada como principal responsável pela tragédia ambiental. O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação civil pública pedindo tutela de urgência para que o município adote medidas “imediatas e definitivas”. A administração municipal respondeu que o caso está sob análise das áreas técnica e jurídica, sem apresentar prazo para solução.
A obra que virou pesadelo
Tudo começou em 2022. A Prefeitura instalou uma rede de drenagem com manilhas que desembocam no Brejo da Flexeira. O problema: moradores e comerciantes de regiões vizinhas fizeram ligações clandestinas e passaram a despejar esgoto direto no território quilombola.
Segundo Rejane Maria de Oliveira, educadora socioambiental e coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a obra prosseguiu mesmo após notificações do Ministério Público.
“O manilhamento foi feito em cima do pesqueiro. O mau cheiro ficou insuportável, e as pessoas não podem mais pescar, porque está caindo esgoto e produto químico”, denuncia Rejane.
Água que era vida virou doença
O brejo sempre foi fonte de alimento, renda e tradição. As 420 pessoas distribuídas em cerca de 120 famílias dependiam da pesca, da água e da vegetação local. Agora, o ecossistema está morto.
“Durante muito tempo, esse brejo nos alimentou e nos sustentou. Foi lugar para banho e para prover água. O brejo faz parte da nossa história, da nossa vida. Ele foi tudo. Agora, não serve para mais nada”, lamenta a quilombola.
Os danos vão além do econômico e do ambiental. Moradores desenvolveram lesões de pele após contato com a água contaminada. “As pessoas contraíram manchas no corpo que permanecem até hoje. Depois descobrimos que a única coisa em comum era a água”, conta Rejane.
MPF exige ação imediata
O inquérito civil foi instaurado em março de 2023. Durante mais de dois anos, o MPF realizou reuniões, visitas técnicas e vistorias em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).
Em novembro de 2024, laudo técnico da Defensoria confirmou a persistência de ligações clandestinas e a presença de produtos químicos na tubulação.
O procurador Leandro Mitidieri afirma que as medidas pontuais da prefeitura — como notificações, vistorias e instalação de alguns sistemas individuais de tratamento — foram “insuficientes para cessar a poluição”.
Na ação movida agora, o MPF pede:
- Remoção imediata de todas as ligações clandestinas de esgoto
- Despoluição total do Brejo da Flexeira em até 90 dias
- Desfazer obras de manilhamento irregular e construir nova rede que impeça novo despejo no território quilombola
- Indenização por danos morais coletivos de, no mínimo, R$ 1,2 milhão
Como alternativa à indenização, a comunidade sugere investimentos em tanques de piscicultura, restaurante comunitário, forno para produção cerâmica e programas de educação ambiental.
“Nada vai pagar o que já aconteceu, mas a gente precisa de alternativas. Tanques de peixe são importantes, porque o brejo vai demorar a voltar ao normal”, explica Rejane.
Racismo ambiental escancarado
O Quilombo de Maria Joaquina é formado por descendentes de ex-escravizados da antiga Fazenda Campos Novos. A comunidade possui portaria de reconhecimento de território de 165 hectares, emitida pelo Incra em dezembro de 2024, mas ainda aguarda titulação definitiva.
Rejane destaca que o próprio quilombo nunca despejou esgoto no brejo e mantém sistemas de fossa e sumidouro apropriados. Para ela, o caso é claro: racismo ambiental.
“Tudo de ruim querem jogar para o quilombo. Hoje, é o esgoto. Amanhã, pode ser um lixão. Por que essas coisas não acontecem no centro da cidade? Desde o começo, percebemos que essa poluição era claramente um caso de racismo ambiental”, denuncia.
A liderança quilombola argumenta que comunidades tradicionais são as melhores guardiãs do meio ambiente. “Nós nunca jogamos esgoto no brejo, porque sabemos a importância dele para nossas vidas. Sempre o preservamos”, afirma Rejane.
“Se você for em qualquer comunidade quilombola e aldeia indígena, vai ver que a maneira como nos relacionamos com a natureza é diferente. Não destruímos, não poluímos, não queimamos. Preservamos, porque amamos”, completa.

