A Câmara dos Deputados decidiu que Carla Zambelli segue deputada — mesmo presa na Itália, mesmo condenada em definitivo pelo STF, mesmo em regime fechado, e mesmo depois de participar, segundo a Corte, da invasão de sistemas do CNJ com direito a documentos falsos, mandados de prisão inventados e toda a sorte de delírios digitais do bolsonarismo radical.
O placar? 227 votos pela cassação, 110 contra e 10 abstenções. Parece muito. Não é. Faltaram 30 votos para atingir os 257 necessários. E, no Congresso, 30 votos não caem do céu — caem de acordos, alinhamentos e conveniências.
A decisão expõe um desconforto antigo da Câmara: ela detesta quando o Supremo entrega um caso “pronto”. Quando o STF condena um parlamentar e diz que cabe à Mesa declarar a perda do mandato, o Legislativo sente cheiro de interferência. E quando o parlamentar condenado é Carla Zambelli, então, o Congresso vira palco de um malabarismo institucional.
O desconforto veio travestido de legalidade
A CCJ até aprovou o parecer do deputado Claudio Cajado, dizendo o óbvio: não existe mandato exercível em regime fechado. É incompatibilidade fática elementar. Ele citou inclusive o caso Nelson Meurer como precedente.
Mas bastou o tema chegar ao plenário para aquele instinto corporativo vibrar. De repente, vários parlamentares passaram a descobrir nuances filosóficas entre “mandato” e “prisão”. A relatoria de Diego Garcia, rejeitada na CCJ, ressurgiu como bengala retórica: “não há provas”, “Delgatti muda a versão”, “fragilidade de indícios”. Curioso — tudo isso já havia sido analisado pelo STF, cujo processo transitou em julgado.
A defesa de Zambelli apostou na narrativa da dignidade
O advogado Fábio Pagnozzi repetiu que as provas são frágeis e que Zambelli só quer “dignidade”. É, no mínimo, uma definição inovadora de dignidade: permanecer deputada mesmo sem condições físicas ou legais de exercer o cargo.
Ele chegou a dizer que Zambelli cogitaria renunciar se mantivessem o mandato. Renunciar após não ser cassada? Brasília deveria dar prêmio de criatividade política.
A ala governista também se dividiu
Jandira Feghali foi direta: não havia por que levar o caso ao plenário. Se a deputada está presa e condenada, a Mesa deveria declarar a perda do mandato sem teatrinho. Mas a Câmara adora um teatrinho — e o bolsonarismo adora plateia.
Já o líder do PL, Sóstenes Cavalcante, pediu que a Câmara não “se metesse” no assunto. Segundo ele, era melhor esperar que Zambelli fosse cassada por faltas dentro de uma semana. Acredite se quiser: propôs poupar a deputada de uma cassação hoje para deixá-la ser cassada na terça-feira que vem. Brasília tem dessas pérolas.
Mas técnicos da Casa lembraram que a conta das faltas só estouraria em 2026. Ou seja: argumento furado, mas funcionou bem como cortina de fumaça.
O voto que falou mais alto foi o do cálculo político
Antes de tudo, este caso revela uma contradição:
Se Glauber Braga quase perdeu o mandato por chutar um militante, Carla Zambelli, condenada a 10 anos, presa, foragida e envolvida em falsificação de documentos judiciais, mantém seu mandato sem sequer pisar no plenário.
A pergunta inevitável:
será que a régua moral muda conforme o grupo político envolvido?
Spoiler: claro que sim.
Zambelli não foi protegida individualmente — foi protegida pela lógica de sobrevivência do sistema político brasileiro. A Câmara, quando pode evitar validar decisões do Supremo, evita. Quando pode empurrar para outro dia, empurra. Quando pode criar uma narrativa simpática para sua própria inação, cria.
E assim terminou mais um capítulo dessa novela institucional:
Zambelli segue presa.
Segue condenada.
Segue inelegível no futuro.
Mas segue deputada.
Porque, no fim, para parte do plenário, cassar uma parlamentar condenada em regime fechado seria “abrir precedente”. A ironia é que o único precedente real que se abriu hoje é este:
a Câmara jamais desperdiça a chance de desperdiçar uma chance de ser coerente.

